A crise na Americanas e o mercado de beleza: Invertendo as posições

A crise na Americanas e o mercado de beleza: Invertendo as posições

Historicamente um dos varejistas mais difíceis no trato com os fornecedores, as Lojas Americanas vivem um momento delicadíssimo. O peso e a capilaridade da sua rede de lojas físicas fizeram dela um ator chave para muitas empresas de cosméticos, que acabavam “engolindo” as condições impostas pela rede. Agora, em meio a um rumoroso processo de fraude que a levou a entrar com o pedido de recuperação judicial, o mercado de beleza precisa lidar com uma dívida de centenas de milhões divididas entre mais de 40 indústrias e distribuidoras ao mesmo tempo em que precisa pensar em como lidar com o tradicional parceiro e em como buscar novas alternativas para recompor suas vendas e o desenvolvimento de categorias nas quais a posição da Americanas era bastante relevante

A LASA, antiga nomenclatura pela qual a tradicional Lojas Americanas é conhecida dentro das empresas que negociam com ela, nunca foi um cliente de trato fácil. Lidar com a centenária rede carioca sempre exigiu paciência e disposição dos seus fornecedores da indústria cosmética, e isso não é de hoje. A varejista sempre foi, entre os grandes players do do setor com relevância na área de beleza, a que mais exigia da indústria em termos de condições e concessões, especialmente prazos: a LASA sempre foi precursora em elevar os prazos de pagamento. Quando o padrão eram faturas com vencimentos em 30 dias, a empresa já exigia 60, 90 dias para pagar. Nos últimos tempos, o prazo já estava em 180 dias, segundo apontado por algumas das inúmeras reportagens realizadas pela mídia desde que veio a tona a acusação da bilionária fraude contábil estimada em R$ 20 bilhões e  levaram a empresa a buscar a Recuperação Judicial para tentar se proteger dos credores num momento em que a varejista viu o seu caixa secar de cerca de R$ 8 bilhões no início do ano para parcos R$ 800 milhões no final de janeiro. Oficialmente, a Americanas elencou uma dívida de mais de R$ 47 bilhões, especialmente com instituições financeiras, mas também com muitos dos seus parceiros fornecedores nos diversos segmentos no qual a companhia opera.

As dívidas da Americanas com indústrias e distribuidores do segmento de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos ultrapassam os R$ 320 milhões, com mais de 40 indústrias do setor. O total inclui dívidas com P&G e Unilever, empresas que vendem na varejista também ítens de outras categorias, como alimentos e produtos de limpeza; e com duas empresas do segmento de eletro beleza, a Ga.Ma Italy e a Taiff. Apenas com essas duas últimas, a dívida supera os R$ 10 milhões.

Empresas de pequeno e médio porte também foram afetadas pela situação. A goiana Biocap, fabricante da linha de cuidados com a pele Hidramais, tinha na Americanas um dos seus principais clientes e com a qual tem mais de R$ 500 mil a receber, segundo o levantamento da própria rede e que compõe o processo de recuperação judicial. Com a Muriel e a Bio Extratus, a dívida apontada é de quase R$ 300 mil. A QOD, empresa focada na categoria de produtos masculinos, é de R$ 14 mil, o menor valor entre as empresas do setor  listadas por Atualidade Cosmética a partir da leitura da relação apresentada à Justiça. A terceirista de aerossóis paranaense Baston, que tem atuado no mercado com a sua própria linha de desodorantes, a Above, está entre os 10 maiores credores da LASA no segmento de beleza, com mais de R$ 10 milhões à receber. Já a Extrato Flora, terceirista baseada na cidade de Cosmópolis, no interior de São Paulo, que fabricava ítens de higiene e beleza para a marca própria da varejista, a Basic Care, tem quase R$ 9 milhões à receber da empresa.

OS CREDORES DA AMERICANAS NA INDÚSTRIA DE BELEZA

CEO da Varese Retail e especialista na área de varejo, Alberto Serrentino lembra que ainda existem muitas indefinições sobre os rumos que a operação deve tomar nos próximos meses, mas que é preciso, para analisar a situação, levar em conta os dois  lados do negócio da Americanas: o online e o offline. Em 2021, as operações digitais da Americanas, que engloba plataformas como Submarino e Shoptime, somaram R$ 19 bilhões em vendas brutas, com avanço de mais de 40% em relação a 2020.  Para Serrentino, nessa seara, a perda de mercado é mais rápida, porque o cliente dispõe de muitas opções e pode migrar mais facilmente caso não encontre o produto ele vai para outra loja. “Aqui, o impacto é mais rápido e forte, mas menos traumático para o cliente”, lembra o CEO da Varese Retail. Também os Sellers, os parceiros do marketplace da empresa e responsáveis por boa parte da oferta de produtos oferecida nos sites da Americanas, costumam operar em múltiplas plataformas e podem passar a priorizar outras.

Já nas lojas físicas, que superaram a barreira dos R$ 13 bilhões em vendas brutas no ano de 2021, a grande questão diz respeito à capacidade da LASA de acessar linhas de crédito que a permitam manter as lojas abastecidas, com reposição de estoques e a operação rodando. “Os fornecedores estão quase todos encurtando o prazo ou vendendo à vista, o que pressiona enormemente o caixa da empresa”, reforça Alberto Serrentino. “Vamos ter que esperar para ver se a rede vai ter esse fôlego ou não. Quanto menos fôlego ela tiver, mais difícil vai ser manter as vendas e ela tende a perder mercado. Mas a extensão dessa perda e o destino de uma eventual migração desse consumo vai depender muito de categoria a categoria, de praça a praça”, emenda o especialista.

Embora ainda seja cedo para falar do que deve acontecer com a Americanas nos meses e anos à frente, uma coisa parece certa: no curto prazo a rede deve sofrer com restrições de crédito e vai sentar em cima do seu caixa. Isso deve determinar também as categorias prioritárias para a rede, aquelas que vão ajudar o negócio a se manter girando de imediato. “Quem já é cliente da Americanas tem percebido uma ruptura grande e essa ruptura se dá pela falta de reposição do próprio fornecedor, mas temos certeza de que ele vai se estender ao longo ano”, diz Julio Takano, CEO da KT Retailing, empresa especializada em arquitetura de varejo e de negócios. Para o arquiteto, as primeiras oportunidades devem surgir nos segmentos de bomboniere e bebidas e depois no alimentar, nas quais a Americanas tem um volume de negócios muito grande. Tanto que a primeira escolha da rede foi clara: sustentar a “maior páscoa do mundo”, o que exigiu muitas negociações e pagamentos antecipados com os fabricantes de chocolates. Para Julio Takano, esse segmento de bomboniere e de bebidas e outras indulgências e conveniências, segmento na qual a Americanas é muito forte, deve ser o primeiro a sentir mudanças, com as lojas especializadas destes segmentos tendo a oportunidade de empreender um processo de revitalização e modernização, apoiados pela indústria, para capturar parte dos clientes da LASA. 

Para onde o cliente pode ir?
A capilaridade da rede de lojas físicas da Americanas é algo que torna a sua crise um problema ainda mais crítico para a indústria de beleza. As 1800 lojas da bandeira estão espalhadas por todo o Brasil, inclusive em muitas cidades pequenas e médias do interior das regiões Norte e Nordeste, nas quais outros grandes varejistas nacionais não costumam ter presença. Por exemplo, a maior rede de farmácias do País, a Raia Drogasil, soma cerca de 2500 pontos de vendas em todos os estados brasileiros, mas com presença em 520 municípios. Outra rede do farma, a Pague Menos - que lidera o canal nas regiões Norte e Nordeste -, conta com quase 1600 lojas em todo o território nacional e presença em cerca de 370 cidades. As lojas da Americanas nos seus diferentes formatos estão presentes em mais de 900 cidades, sendo que aproximadamente 40% desses pontos estão nas regiões Norte e Nordeste.

O tamanho e a força das Americanas, faz com que em algumas cidades e em algumas categorias ela tenha um peso muito grande. Co-fundador da consultoria Inteligência 360 e pesquisador do Centro de Excelência do Varejo da FGV, Olegário Araújo enxerga dois principais movimentos migratórios que podem vir a acontecer com os shoppers de beleza da rede. “Dependendo do perfil e do tamanho da cidade, vamos ter, possivelmente, duas migrações. Uma mais intensa para o canal farma, porque entendo que considerando o Brasil como um todo, e mais uma vez, dependendo do perfil do consumidor, ele tende a procurá-las primeiro na farmácia”, acredita Araújo. Para ele, onde o atacarejo estiver presente, também esse canal pode se beneficiar já que tem trabalhado para ampliar o sortimento e reforçar sua atuação nas categorias de higiene pessoal e beleza. “Vai depender do que o shopper entender que atende melhor às suas necessidades”, explica Araújo. Como efeito colateral, o pesquisador cita atenta também que a LASA era reconhecida por uma postura bastante agressiva em termos de preços, e que uma eventual perda de força da rede pode ser positiva nesse sentido, ao menos para os outros varejistas, tirando um pouco a pressão da competição direta com um player com esse perfil.

Para Serrentino, da Varese Retail, embora sejam vários os canais que competem com a Americanas nas categorias de beleza nas quais ela opera, as farmácias estão bem posicionadas para herdar parte dessas vendas a depender do que vier a acontecer com a LASA. “Os produtos que a Americanas vende nessa categoria são itens que compõe o mix de boa parte das farmácias”, pontua o especialista, que na sequência aponta as lojas especializadas, que são muitas no Brasil, normalmente operações regionais ou locais, que também trabalham com um mix de marcas e produtos que cobrem o que normalmente a Americanas vende e são candidatas a absorverem parte dessas vendas, além dos canais digitais e dos próprio super e hipermercados. “Existe uma diversidade de formatos de varejo em praças pequenas e grandes que vão servir os clientes e podem absorver parte dessas vendas”, reforça Serrentino. 

A Americanas é um player extremamente relevante em diversas categorias de higiene pessoal como desodorantes, sabonetes líquidos e shampoos e pós-shampoo, o que faz da empresa uma compradora relevante pelo volume de negócios que gera. Além da área de higiene pessoal, a Americanas construiu ao longo das últimas décadas uma posição bastante forte em algumas categorias de cosméticos, com presença superior a de outros canais. A mais emblemática delas talvez seja a de coloração. Tanto que praticamente todos os players de mass market  relevantes da área tinham posições fortes na LASA e figuram com valores consideráveis na lista de credores. As duas maiores credoras da rede que se dedicam exclusivamente à área de higiene pessoal e beleza, L’Oréal  e Coty, são também os players dominantes na categoria (a Coty manteve um acordo de distribuição para o varejo das linhas de coloração de mass market da Wella, como Koleston). Nomes como Alfaparf (Alta Moda), Embelleze (Maxton), Beautycolor, Duty (Duty Color) e Marcia estão, proporcionalmente, até mais expostas. Apenas com a Alfaparf, a dívida é de R$ 4.6 milhões, com a Embelleze, R$ 2.6 milhões e com a Duty Cosméticos e a Perfumaria Marcia, outros R$ 1.3 milhão e R$ 800 mil, respectivamente. “O volume da Americanas na categoria de coloração é impressionante e a indústria vai ter que se ajustar a essa nova realidade e buscar fortalecer suas posições em outros canais”, reconhece Olegário Araújo. Trata-se de um desafio, uma vez que essa é uma categoria que exige muito espaço pelas características do sortimento. “As farmácias têm na questão do espaço que pode ser destinado a essa categoria um problema, o que faz com que a  oferta de cores e marcas seja bastante limitada nas drogarias, quase sempre limitando-se às principais marcas e referências dentro de cada uma delas. “Os supermercados também não conseguem realizar um bom trabalho de gestão de sortimento nessa categoria, embora disponham de mais espaço. Para o co-fundador da Inteligência360, essa categoria tem sido melhor tratada pelas perfumarias.

Outro segmento no qual a Americanas construiu uma posição historicamente forte,  é a de produtos mass market para a face, que por décadas não conseguiu achar um espaço para existir no varejo. Por isso, a Americanas se constituiu como um ponto relevante para a exposição dessas linhas de marcas como L’Oréal Paris, Nivea e Neutrogena (Johnson & Johnson). Isso sem falar na parte de hidratação e proteção solar, mas caso no qual, assim como nas categorias de higiene pessoal, a LASA era um ator relevante dentre muitos outros no grande varejo que também trabalham bem com essas categorias. 

Para Takano, a categoria de cuidados com a face é uma das que, em um eventual prolongamento de uma situação difícil nas Americanas, pode forçar a indústria a buscar alternativas para avançar com essa categoria em outros canais como as farmácias independentes e, naturalmente, a perfumaria. Até porque, este é um canal que há tempos vem falando em abrir mais espaço para esse tipo de produto sem ter conseguido grandes sucessos até o momento. Só que para capturar esse consumidor da Americanas, em especial o consumidor da rede nas cidades pequenas e médias, ou em áreas mais populares, o CEO da KT Retailing acredita que é importante que as perfumarias não caiam no erro de tentar trazer os clientes que compram itens dessa categoria na LASA replicando o seu modelo. Como o arquiteto vê o impacto de uma potencial migração (ou captura) mais forte de clientes da Americanas no setor de beleza vindo não de imediato, mas apenas em um segundo ciclo, as perfumarias terão tempo para se preparar com qualidade para atrair e reter parte desses clientes potenciais. Isso porque, Takano acredita, assim como Serrentino e Araújo, que o avanço para o canal de perfumarias será limitado pela própria posição das farmácias, que há muito vem se organizando para promover isso.

Perfis diferentes
A construção de um modelo de massa, popular que a Americanas estabeleceu no segmento de beleza, faz com que o shopper da varejista nessa categoria não seja o mesmo dos shoppers que costumam frequentar as lojas do varejo especializado. “As perfumarias estão buscando uma mudança de percepção em relação a construção de um espaço de beleza mais sofisticado. Se eu vou passar a ofertar mais tintura, por exemplo, se eu colocar isso mal planogramado, sem uma oferta adequada, sem organização, simplesmente não vai dar certo. É preciso trazer o cliente da Americanas e mostrar a ele algo novo, superior ao que a Americanas oferece nessas categorias de higiene pessoal e beleza nas quais ela é grande”, acredita Takano, para quem só vender o mesmo que a Americanas já vende, sem a capilaridade e a margem que um varejista desse porte consegue, não vai dar certo. “É preciso ser especializado, não massificado. A perfumaria está entre os melhores canais para a indústria construir marcas dentro de uma visão de ecossistema de negócios, que contempla os diferentes canais nas quais ela atua e a indústria está certa de que esse é o caminho e investindo. Não é uma possibilidade, é uma realidade”, conclui Takano. 

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